Widal, Georges-Fernand (1862-1929)

Na viragem do século XIX para o século XX a febre tifóide era um grave problema de saúde pública, só ultrapassada pela tuberculose.

Em 1896, um médico francês, Georges-Fernand Widal, publica no Lancet a descrição de um método para identificação serológica da febre tifóide: Widal descobrira que o soro de um doente com febre tifóide provocava a aglutinação de uma suspensão do bacilo de Eberth
(1), enquanto o soro de uma pessoa saudável o não fazia.

Georges-Fernand Widal nasceu na Argélia em 1862, numa família judia. Os judeus argelinos não eram franceses, mas isso não impediu Widal de estudar medicina na universidade de Paris
(2). Quando Widal chega a Paris, os trabalhos de Pasteur e dos seus discípulos inauguram uma medicina nova que junta, ao trabalho à cabeceira do doente, a observação e a experiência no laboratório. Em 1884, aos 22 anos, é Interne des Hôpitaux e, em 1888, com 26 anos, obtém o doutoramento com uma tese sobre o Streptococcus como agente etiológico da febre puerperal, endocardite e erisipela. Depois de 1888 trabalha durante dois anos em bacteriologia no laboratório do professor Cornil, de quem também foi aluno Alexandre Yersin.

Widal publicou a sua descoberta da reacção de aglutinação do bacilo de Eberth com soro de doentes com febre tifóide no Lancet, no número de 14 de novembro de 1896, meses depois de a apresentar à Sociedade Médica dos Hospitais de Paris. A conclusão do artigo espelha bem uma ciência laboratorial que se preocupava cada vez mais em corresponder a necessidades clínicas, mais do que à investigação pura
(3).

O teste descrito por Widal tornou-se rapidamente popular. Fácil de executar, tinha igualmente uma utilidade clínica e epidemiológica imediata, porque permitia diferenciar a febre tifóide de outras situações clínicas acompanhadas por febre, como a tuberculose, o tifo e a pneumonia. Permitia também o rastreio de populações em larga escala.


A controvérsia sobre a sua interpretação e fiabilidade, contudo, manteve-se ao longo dos anos, competindo em perenidade com o uso do próprio teste. Por causa dos problemas, nunca resolvidos, de inespecificidade e insensibilidade e de padronização
(4), o teste não substitui o diagnóstico definitivo através do isolamento do microrganismo no sangue ou nas fezes.

Por outro lado, a melhoria das condições de higiene reduziu drasticamente a prevalência da infecção, tornando o tema menos importante. Mas em países onde as condições de higiene continuam a ser deficientes e outros métodos laboratoriais estão dificilmente estão disponíveis, a reacção de Widal continua a ser largamente utilizada.


Embora o nome de Fernand Widal tenha ficado ligado sobretudo ao teste de aglutinação da Salmonella e Widal fosse popularmente conhecido entre os colegas do Salpêtrière como “o médico dos coelhos”, o seu contributo para a ciência médica não se reduz à bacteriologia. Estudou a fisiopatologia do choque, então designado como “crise hemoclástica de Widal”, descrevendo exaustivamente as alterações hematológicas que lhe estão associadas, leucopénia e perturbações da coagulação. E a observação das mesmas alterações num comerciante de ovelhas que desenvolvera asma severa quando exposto aos animais levou-o a relacionar a alergia e a asma com o desenvolvimento do choque anafilático. Também estudou a fragilidade osmótica aumentada dos eritrocitos na icterícia de causa hemolítica e o seu nome ficou associado ao tipo Hayem-Widal da anemia hemolítica adquirida idiopática e ao teste de Widal-Abrami para a hemoglobinúria paroxística nocturna.


A vacina que desenvolveu para a febre tifóide foi decisiva na redução da morbilidade entre os exércitos Aliados durante a Primeira Grande Guerra.



Notas:

  1. Em 1880, Karl Eberth, um patologista alemão a ensinar na universidade de Zurique, relacionou pela primeira vez a presença de um microrganismo com a febre tifóide. Em sua honra, o agente foi designado inicialmente por “bacilo de Eberth”, ou Erbethella typhii. Só mais tarde recebeu o nome que ainda mantém: Salmonella typhii. Eberth fez outros trabalhos importantes, designadamente na histopatologia do sistema vascular, mas a descoberta do agente da febre tifóide é que o celebrizou.
  2. Os judeus da Argélia, no fim do século XIX, eram descendentes de escravos levados para o norte de África a seguir à conquista e destruição de Jerusalém pelos romanos, dois mil anos antes. Não são bem vistos, nem pelos árabes nem pelos franceses, que conquistam o território ao Império Otomano em 1800. Em 1870, contudo, quando Widal tem 8 anos, o decreto Crémieux concede aos judeus argelinos a nacionalidade francesa. O decreto não é bem recebido pelos colonos franceses, para quem, nas palavras de Jacques Tarnero, em Oran, “la hiérarchie des racismes organisait la société".
  3. Here is a simple and rapid process which can be employed by everyone, necessitating no lab material. All that is necessary is to have at one’s disposal pure cultures of Eberth’s bacillus, a microscope, and a few drops of serum or even only one drop of the blood of the patient.” 
  4. O teste utiliza uma suspensão de Salmonella typhii e paratyphii como fonte do antigénio, permitindo detectar a presença de anticorpos dirigidos contra os antigénios H (flagelares) e O (somáticos) da bactéria em doentes na fase aguda ou em convalescença. Os determinantes antigénicos da Salmonella typhii são partilhados por outras espécies de Salmonella e por outros agentes infecciosos, incluindo malária, dengue e brucellose, o que compromete a sua especificidade. Falsos negativos podem dever-se a erros na execução do teste ou ao estado de portador assintomático ou terapêutica antibiótica prévia. Os problemas com a padronização dos antigénios também nunca foram satisfatoriamente resolvidos.

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