INTRODUÇÃO

O laboratório moderno nasceu no século XIX mas há referência a técnicas e procedimentos que poderíamos considerar “para-laboratoriais” em muitas civilizações antigas.
Em 600 AC, no Sushruta, um dos textos fundadores do Ayurveda (a medicina indiana tradicional), regista-se o sabor doce que tem a urina dos diabéticos. E, no antigo Egipto, os sacerdotes recolhiam a urina da mulher supostamente grávida e regavam com ela várias sementes: se germinassem, a gravidez confirmava-se, sendo o sexo do feto definido pelo tipo de sementes que germinava.

Através da civilização greco-romana, da civilização árabe, da Idade Média e das Luzes, é possível identificar precursores, do uroscopista aos alquimistas, dos químicos vitalistas aos curiosos da microscopia. Mas só no século XIX é que os líquidos orgânicos vão ser objecto de análise sistemática: medição, comparação entre a normalidade e os estados patológicos, interpretação com propósitos de diagnóstico e prognóstico.Para chegar aí há antes um longo período de mudança de mentalidades e atitudes que vai criar uma ciência médica (sem que isso signifique uma alteração da prática clínica) e, a partir sobretudo de meados do século XVIII, permitir uma compreensão nova dos fenómenos fisiológicos na base da doença, da teoria celular à teoria dos germes e à química orgânica; a invenção de tecnologias e métodos analíticos cada vez mais precisos; e novas formas de investigação e ensino médico e da relação entre a clínica e o laboratório.

o nascimento do laboratório (1790-1850)

O laboratório clínico nasce quando a medicina incorpora as duas grandes revoluções intelectuais do Renascimento e das Luzes: o primado dos factos e o reducionismo. Os factos vêm com os hospitais e a autópsia, com Fourcroy e Bichat. O reducionismo vem com Magendie.
Os hospitais, invenção francesa chegada com a Revolução, serão decisivos na orientação da medicina para o doente e, sobretudo, para o cadáver: a anatomia patológica nasce aí. A medicina francesa estará na vanguarda europeia durante décadas graças a essa conjugação entre uma universidade que deitou fora a autoridade dos textos antigos e um hospital que permite estudar os factos. Há um homem na origem desta revolução: Antoine Fourcroy.
Mas os médicos (os “práticos”) e a população em geral aderiram mal a esta nova ciência médica, seja por superstição e hábito, seja porque, de facto, não era evidente em que medida os novos conhecimentos podiam contribuir para o diagnóstico e tratamento dos doentes – eficazmente e em tempo útil.

da ciência à clínica (1850-1930)

É na segunda metade do século XIX que figuras como Pasteur, Koch e Claude Bernard (discípulo de Magendie) impõem definitivamente a medicina experimental, desenvolvendo modelos fisiopatológicos e apresentando resultados práticos e sistemáticos na prevenção e tratamento das doenças: a teoria dos germes, a assépsia, a ligação entre germes e doenças infecciosas e estratégias eficazes para a sua contenção. A microscopia e a bacteriologia constituem-se como auxiliares efectivos da clínica, alterando a percepção e o diagnóstico da doença e despertando, enfim, o interesse dos médicos.
Os institutos de investigação são fundamentais nesta explosão científica. Há uma “rede” franco-alemã de investigadores, que assenta nos Institutos de investigação  e nas figuras que estão na sua origem: von Liebig e Koch na Alemanha, Pasteur em França. Na verdade, se, à época, a França e a Alemanha são “irmãos desavindos”, cujos conflitos culminam na guerra franco-alemã de 1871, na ciência afirmam-se como grandes potências complementares. Todos ou quase todos os grandes cientistas da época são alemães ou franceses ou estudaram e trabalharam na Alemanha ou em França – com von Liebig, Koch, Pasteur, ou com os discípulos destes. , Só no século XX, depois da Grande Guerra de 1914-18, é que o centro da inovação se deslocará para os EUA, ainda assim assente, ou nos europeus que emigram para o novo mundo, ou em americanos que estudaram nos institutos europeus ou com gente que o fez.
A química, entretanto, embora faça progressos assinaláveis, isso em pouco se traduz ao nível do diagnóstico e tratamento. A abordagem funcional e metabólica de Claude Bernard é brilhante mas não tem ao dispôr ferramentas que permitam explorar todo o seu potencial. Homens como von Liebig e Bence-Jones fazem contributos muito significativos, mas desgarrados ou sem consequências clínicas. Será preciso esperar pelos meados do século XX para que a química clínica ganhe estatuto próprio.
A partir de 1860, um novo fenómeno atrai a atenção de investigadores e clínicos: a aglutinação. O estudo da aglutinação é um fabuloso exercício de raciocínio fisiológico feito sem qualquer base molecular, que unifica mecanismos hemáticos e bacterianos num modelo global. O seu estudo e aplicação prática no campo dos polimorfismos (a começar pelos grupos sanguíneos) e do sero-diagnóstico trará consigo uma das maiores transformações (conceptuais e técnicas) do laboratório: nasce a imunologia como técnica laboratorial. De facto, grande parte dos métodos então desenvolvidos mantêm-se ainda hoje em uso corrente ou como métodos de referência.

tecnologia e organização (1945-1960)

Até à Segunda Guerra Mundial, embora haja descobertas e inovações técnicas importantes, os laboratórios de rotina clínica não são muito diferentes, na organização e na tecnologia, daquilo que eram no início do século. É nos quinze anos que se seguem ao termo da guerra, entre 1945 e 1960, que vamos assistir a uma verdadeira revolução, tanto ao nível das tecnologias (o tubo de vácuo, a electroforese, os kits pré-feitos, a enzimologia diagnóstica, o RIA e o auto-analisador) como do aparecimento das primeiras organizações orientadas para a definição de padrões de trabalho e de qualidade de aplicação universal (fundação da AACC e da IFCC, formulação das primeiras normas de orientação clínica e lançamento dos primeiros programas de Avaliação Externa da Qualidade).


regresso ao futuro

As décadas seguintes serão de desenvolvimento explosivo das tendências surgidas nesses anos: consolidação e automação, crescimento e diferenciação. Mais e mais parâmetros analíticos, técnicas cada vez mais seguras, sensíveis e precisas, máquinas cada vez mais rápidas.
É aí que estamos hoje: um tempo em que as análises clínicas deixaram de ser "complementares" para se tornarem centrais mas em que os recursos continuam escassos e a necessidade de racionalizar custos não é um objectivo mas uma necessidade.

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