Uma evidência que impressiona é a ausência de progressos na medicina durante o longo período de quase 2 mil anos que vai de Hipócrates a Harvey. Ao mesmo tempo que a engenharia, a física e a astronomia se desenvolviam com firmeza, a medicina continuava a dissertar sobre humores e a prescrever a mesma mão cheia de ervas.
Esta falta de progressão foi produto de diversos factores. Para começar, o corpo era intangível: ou porque era sagrado e não eram permitidas autópsias, ou porque era impuro, uma casca vazia a que não devia ser dada atenção. A doença era um castigo divino ou acção do demónio, e era portanto necessário cumprir penitência ou exorcisar. A observação dos factos e o raciocínio não eram convenientes nem necessários. Acresce que as estrelas e os planetas são observáveis, as cheias dos rios, o governo dos homens e o movimento dos fluidos são observáveis: astrónomos, agrimensores, filósofos e engenheiros puderam observar, classificar e deduzir muito antes de terem instrumentos sofisticados à disposição. Na medicina, o interior do corpo não era observável: as autópsias eram proibidas na maior parte das civilizações antigas, ou fortemente desencorajadas; e a vivissecção não era opção, por motivos óbvios. E não havia mais nada! Os agentes infecciosos exigiam, para serem vistos, um instrumento que só surgiu no século XVII (o microscópio). Os raios X apareceram no fim do século XIX. Auscultação? O estetoscópio é uma invenção do século XIX. Em suma: não houve avanços porque aquilo que era importante passava-se longe da vista humana: no interior sagrado e inviolável do corpo ou na micro-dimensão das bactérias e das células, impensáveis porque invisíveis.
Note-se que a cirurgia, problema ao alcance dos olhos humanos e com resultados verificáveis empiricamente, experimentou, ao contrário da medicina, avanços brilhantes ao longo dos séculos. Os limites que tinha no século XIX eram os limites impostos pela falta de anestesia e, sobretudo, de assépsia. Em comparação, a medicina, na mesma época, e tirando as notáveis colecções diagnósticas da escola francesa, tornadas possíveis pela Revolução e o aparecimento dos primeiros hospitais, só tinha algumas ervas (ao alcance de qualquer ervanário, ou especieiro) e meia dúzia de teorias velhas e desacreditadas.
A incapacidade da medicina pré-moderna para evoluir deveu-se a uma incapacidade de visão. A medicina continuou mito porque não havia factos. Os factos relevantes eram, para a tecnologia dessas épocas, invisíveis. E a ciência só avança onde vê.
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