Uma
das características da ciência moderna é o aparato tecnológico e a ciência
médica não foge à tendência. Entre os objectos que fazem a sua entrada no
imaginário médico com o século XIX há um que interessa particularmente ao
laboratório: o microscópio.
Os equipamentos utilizados pelos químicos eram pesados, volumosos e incompatíveis com o consultório médico ou a cabeceira do doente. O microscópio, não. E, com a popularização da teoria dos germes por Pasteur e Koch, “ver o invisível” tornou-se uma necessidade, um sinal de ciência, uma afirmação de status, numa altura em que a medicina científica começava a pagar dividendos aos clínicos que a alardeavam.
O uso de lentes de aumento já era conhecido dos escolásticos medievais mas o primeiro dispositivo de lentes compostas, que poderá ser considerado o antepassado do microscópio, só foi concebido em 1590 por um oculista holandês, Zacharias Janssen (1585-1632). E o primeiro instrumento realmente prático só surgiu em 1673, criado por Antonj van Leeuwenhoek (1632-1723). Esses primeiros instrumentos, apesar de primitivos, permitiram contudo a Malpighi (1628-1694) e Robert Hooke (1635-1703) os primeiros avanços significativos no campo da fisiologia microscópica.
Mas não foi fácil impôr a microscopia. No início do século XIX, a desconfiança perante o mundo novo que o microscópio revelava era grande. Os vultos mais influentes da nova medicina científica, geralmente abertos à experimentação e à revisão das velhas ideias, como Bichat, que levara o entendimento da fisiopatologia do nível do orgão para o do tecido, Magendie (1783-1855), um fervoroso defensor da medicina científica e experimental, ou Auguste Comte (1798-1857), o apóstolo do positivismo que tanto contribuiu para a adopção do paradigma experimental na ciência, eram abertamente contra, recusando-se a dar importância às estruturas vistas ao microscópio. Palavras de Bichat: “Quando se olha no escuro, cada qual vê à sua maneira.” E Comte fala do “abuso das pesquisas microscópicas e o crédito exagerado que muitas vezes se dá a um meio de exploração tão equívoco.”
O cepticismo destes homens não é um preconceito. É cautela. É um receio objectivo de que o microscópio crie artefactos e altere a realidade. E sabem do que falam. Os primeiros microscópios apresentavam duas fontes de distorção importantes: a aberração cromática e a aberração esférica. Embora alguma correcção tivesse sido já conseguida durante o século XVIII, será Joseph Lister (1786-1869), um negociante de vinhos inglês apaixonado pela ciência natural e pai de outro Joseph Lister (1827-1912), o cirurgião que pela primeira vez utilizou ácido fénico para desinfectar as feridas operatórias, quem, por volta de 1830, consegue eliminar de facto os principais efeitos de distorção.
A correcção conseguida por Lister e a introdução, na mesma altura, por fabricantes alemães como a Zeiss e a Leitz, de processos de fabrico mecanizados que padronizam e tornam barata a produção do microscópio (colocando o instrumento ao alcance até dos estudantes) vão enfim permitir rápidos progressos. Primeiro na nova ciência da Histologia, em que Theodor Schwann (1810-1882) estende a teoria celular de Hooke das plantas aos animais, e, depois, no estudo dos “germes” e do sangue.
Os primeiros cursos de microscopia médica são dados em Paris em 1837 por Alfred Donné. Nos anos 1840, George Rees, trabalhando no Guy’s Hospital, investiga a estrutura e as propriedades dos “corpúsculos vermelhos”, compreende que todos os corpúsculos são rodeados por uma membrana e faz experiências com os efeitos osmóticos de várias soluções. George Gulliver (1804-1882), cirurgião do Royal Regiment of Horse Guards, sugere que os glóbulos de pus detectados no sangue em situações de supuração ou inflamação extensa são corpúsculos vermelhos modificados e mede os diâmetros dos corpúsculos vermelhos em várias espécies animais – precedendo as técnicas posteriores de contagem de células sanguíneas e estimativa da hemoglobina.
A questão da contagem das células sanguíneas torna-se, de resto, central. Em 1845, quando Rudolph Virchow e Alfred Donné descrevem pela primeira vez a leucémia, o diagnóstico não assentava na contagem do número absoluto de células mas no seu número relativo: aceitava-se que a relação normal entre glóbulos brancos e vermelhos era 1:300. Estes processos, de aplicação essencialmente hospitalar, onde os doentes chegavam já em fases avançadas da doença, mostravam-se contudo pouco sensíveis para manejar outras situações patológicas.
O primeiro método eficaz de contagem de células no sangue foi
desenvolvido em 1851 por Karl Vierordt, utilizando uma pipeta
capilar calibrada, mas a técnica demorava mais de três horas a completar.
Nas décadas seguintes foram feitos progressos vários, por exemplo o
hemocitómetro, cuja invenção é geralmente atribuída a Louis-Charles Malassez
(1842-1909). Com variações e aperfeiçoamentos sucessivos, designadamente por
Georges Hayem (1841-1933) e William Gowers (1845-1915) – que se distinguiu
sobretudo como neurologista – o hemocitómetro foi o método de contagem de
células sanguíneas utilizado em todos os laboratórios até aos anos 1950, quando
começaram a surgir os primeiros contadores automáticos.
Uma terceira dimensão
da microscopia, a caracterização morfológica das células, sofrerá um avanço
espectacular na segunda metade do século, com o desenvolvimento das técnicas de
coloração, um trabalho de Paul Erlich, Dimitri Romanowsky (1861-1921), Gustav Giemsa (1867-1948) e alguns outros,
cujos nomes ainda nos são familiares porque as técnicas que desenvolveram
continuam a ser usadas nos nossos laboratórios.
Os equipamentos utilizados pelos químicos eram pesados, volumosos e incompatíveis com o consultório médico ou a cabeceira do doente. O microscópio, não. E, com a popularização da teoria dos germes por Pasteur e Koch, “ver o invisível” tornou-se uma necessidade, um sinal de ciência, uma afirmação de status, numa altura em que a medicina científica começava a pagar dividendos aos clínicos que a alardeavam.
O uso de lentes de aumento já era conhecido dos escolásticos medievais mas o primeiro dispositivo de lentes compostas, que poderá ser considerado o antepassado do microscópio, só foi concebido em 1590 por um oculista holandês, Zacharias Janssen (1585-1632). E o primeiro instrumento realmente prático só surgiu em 1673, criado por Antonj van Leeuwenhoek (1632-1723). Esses primeiros instrumentos, apesar de primitivos, permitiram contudo a Malpighi (1628-1694) e Robert Hooke (1635-1703) os primeiros avanços significativos no campo da fisiologia microscópica.
Mas não foi fácil impôr a microscopia. No início do século XIX, a desconfiança perante o mundo novo que o microscópio revelava era grande. Os vultos mais influentes da nova medicina científica, geralmente abertos à experimentação e à revisão das velhas ideias, como Bichat, que levara o entendimento da fisiopatologia do nível do orgão para o do tecido, Magendie (1783-1855), um fervoroso defensor da medicina científica e experimental, ou Auguste Comte (1798-1857), o apóstolo do positivismo que tanto contribuiu para a adopção do paradigma experimental na ciência, eram abertamente contra, recusando-se a dar importância às estruturas vistas ao microscópio. Palavras de Bichat: “Quando se olha no escuro, cada qual vê à sua maneira.” E Comte fala do “abuso das pesquisas microscópicas e o crédito exagerado que muitas vezes se dá a um meio de exploração tão equívoco.”
O cepticismo destes homens não é um preconceito. É cautela. É um receio objectivo de que o microscópio crie artefactos e altere a realidade. E sabem do que falam. Os primeiros microscópios apresentavam duas fontes de distorção importantes: a aberração cromática e a aberração esférica. Embora alguma correcção tivesse sido já conseguida durante o século XVIII, será Joseph Lister (1786-1869), um negociante de vinhos inglês apaixonado pela ciência natural e pai de outro Joseph Lister (1827-1912), o cirurgião que pela primeira vez utilizou ácido fénico para desinfectar as feridas operatórias, quem, por volta de 1830, consegue eliminar de facto os principais efeitos de distorção.
A correcção conseguida por Lister e a introdução, na mesma altura, por fabricantes alemães como a Zeiss e a Leitz, de processos de fabrico mecanizados que padronizam e tornam barata a produção do microscópio (colocando o instrumento ao alcance até dos estudantes) vão enfim permitir rápidos progressos. Primeiro na nova ciência da Histologia, em que Theodor Schwann (1810-1882) estende a teoria celular de Hooke das plantas aos animais, e, depois, no estudo dos “germes” e do sangue.
Os primeiros cursos de microscopia médica são dados em Paris em 1837 por Alfred Donné. Nos anos 1840, George Rees, trabalhando no Guy’s Hospital, investiga a estrutura e as propriedades dos “corpúsculos vermelhos”, compreende que todos os corpúsculos são rodeados por uma membrana e faz experiências com os efeitos osmóticos de várias soluções. George Gulliver (1804-1882), cirurgião do Royal Regiment of Horse Guards, sugere que os glóbulos de pus detectados no sangue em situações de supuração ou inflamação extensa são corpúsculos vermelhos modificados e mede os diâmetros dos corpúsculos vermelhos em várias espécies animais – precedendo as técnicas posteriores de contagem de células sanguíneas e estimativa da hemoglobina.
A questão da contagem das células sanguíneas torna-se, de resto, central. Em 1845, quando Rudolph Virchow e Alfred Donné descrevem pela primeira vez a leucémia, o diagnóstico não assentava na contagem do número absoluto de células mas no seu número relativo: aceitava-se que a relação normal entre glóbulos brancos e vermelhos era 1:300. Estes processos, de aplicação essencialmente hospitalar, onde os doentes chegavam já em fases avançadas da doença, mostravam-se contudo pouco sensíveis para manejar outras situações patológicas.
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