VITALISMO E "QUÍMICA ANIMAL"

As teorias médicas do século XVIII insistiam no primado dos orgãos sólidos. Morgagni (1682-1771) introduziu o conceito anatómico do orgão como local da doença e o solidismo, no último quartel do séc. XVIII, estava firmemente estabelecido. As alterações dos fluidos corporais, incluindo o sangue, eram vistas como sintomas, não como sede de doença.
A anatomia era uma disciplina florescente e a sua articulação com a fisiologia (a anatomia animata, ou anatomia viva, como lhe chamou Albretch von Haller – 1708-1777) começava a dar bases científicas sólidas à medicina.
Mas continuava a procura por uma teoria unificada da doença, que pudesse substituir a velha teoria dos humores. Nesta busca por um mecanismo “unificado” dos mecanismos patológicos, o sistema nervoso era um forte candidato. Haller estudara os efeitos mecânicos da estimulação dos nervos periféricos e Galvani (1737-1798) a “electricidade animal”. William Cullen (1710-1790), professor de química e medicina em Edimburgo, defendia que os nervos eram o agente unificador e primeiro da doença, de que todas as outras alterações eram apenas sintomas.
O sangue era o único rival sério na procura de um mecanismo “unificador” dos mecanismos patológicos, conforme enfatizado por John Hunter (1728-1793), que o considerava a própria essência da vida (a materia vitae) e por Herman Boerhaave.
O sangue, que estava disponível em quantidade e era fácil de recolher, e que, pensava-se então, era gerado a partir da comida e continha todos os elementos constituintes do resto do organismo. Fourcroy, por exemplo, sugerira que o quilo era convertido em sangue por um processo que começava na veia sub-clávia e continuava nos pulmões. Os alimentos inanimados seriam convertidos em matéria viva através de um processo a que chamou “animalização”.
Na verdade, a investigação dos processos de digestão e assimilação dos alimentos, da origem do sangue e da origem do calor animal, estiveram no centro dos trabalhos de alguns dos principais químicos que revolucionaram a química orgânica no século XIX, como Gay-Lussac (1778-1850), Berzelius, Liebig ou Prout.
Mas os trabalhos destes homens enfrentaram um cepticismo feroz. O facto de as substâncias “orgânicas”, caracterizadas por serem quase exclusivamente compostas por quatro elementos (carbono, oxigénio, hidrogénio e azoto), serem aparentemente produzidas apenas pelos organismos vivos reforçava a ideia de uma “natureza” especial associada à química da vida. Grandes nomes da nova ciência médica, como Bichat (1771-1802), eram decididamente vitalistas. O estudo das funções vitais como a respiração e a digestão, tornando evidente que ocorriam transformações químicas complexas que não era possível reproduzir no laboratório, reforçou a ideia de que a química da vida obedeceria a regras diferentes da química inorgânica.
Mesmo os que recusavam a ideia de uma força vital ligada ao sangue aceitavam que o sangue era diferente dos outros fluidos corporais (como a urina) e que “espíritos vitais” fluíam entre os orgãos através do sangue. A separação entre química inorgânica e “química animal” só será anulada em 1828, quando Wholer (1800-1882), a trabalhar com Liebig em Giessen, sintetiza acidentalmente ureia.
Nas décadas seguintes vai assistir-se ao lento desenvolvimento de técnicas cada vez mais simples e precisas para análise quantitativa de substâncias no sangue e na urina, à determinação de valores normais e patológicos e à associação de determinadas alterações com patologias específicas. Alguns médicos começam a aceitar a eventual utilidade da química como auxiliar no diagnóstico. Mas, por 1860, a química chega a um impasse. Embora tenha contribuído com uma grande quantidade de dados para o conhecimento fisiológico e patológico, são dados dispersos e de escassa utilidade na clínica. Mesmo os defensores da sua utilidade para a clínica, como Berzelius e Rees, mostram-se cépticos sobre a sua utilidade imediata.
Só no século XX é que a química voltará a recuperar importância na ciência médica.

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