No livro que escreveu sobre Os Intelectuais na Idade Média, Jacques le Goff assinala a existência, na Europa do século XIV, de
... cirurgiões de veste comprida, que possuem os graus de bacharel ou licenciado, ... [e] barbeiros, que fazem o mesmo papel e se dedicam à pequena cirurgia, vendem unguentos e tisanas, sangram, curam feridas e corcundas, e abrem abcessos.
A sabedoria aos sábios, a carne aos miseráveis. Não era só a igreja que impedia os médicos de estudarem nos cadáveres. Os próprios médicos não estavam interessados. Trata-se de uma divisão antiga. No juramento de Hipócrates (460 - 377 a.C.) afirmava-se:
Não praticarei a talha, mesmo sobre um calculoso confirmado; deixarei essa operação aos práticos que disso cuidam.
Esta arrogância atravessou os tempos. No século XIX ainda o 'mestre' atravessava a enfermaria sem tocar nos doentes (geralmente imundos), distribuindo ciência à esquerda e à direita com a mesma displicência com que a rainha Vitória mostrava as jóias ao povo. Recorreria, quando muito, ao exame feito por algum ajudante ou discípulo.
Nem todos cultivaram esta arrogância aristocrática. Em 1628, William Harvey, ao publicar Exercitatio Anatomica de Motu Cordis et Sanguinis, onde estudava e descrevia com exactidão a anatomia e a fisiologia do aparelho circulatório e da circulação sanguínea, escreveu:
I profess to learn and teach anatomy not from books but from dissections; not from the tenets of philosophers but from the fabric of Nature.
Harvey sabia o que dizia e por que o dizia. A dele não era uma atitude popular. O seu contemporâneo René Descartes escreveu na mesma altura, no tratado sobre As Paixões da Alma, que
... há no nosso coração um calor contínuo, espécie de fogo que o sangue das veias nele conserva ... O seu primeiro efeito é dilatar o sangue que enche as cavidades do coração, o que faz que esse sangue, necessitando de ocupar um maior espaço, passe com ímpeto da cavidade direita para a veia arterial, e da esquerda para a grande artéria.
Era um disparate, claro. Mas este era o mesmo homem que, na metafísica, desenvolvia o exigente cogito, ergo sum. Impiedoso na lógica, divagava na fisiologia. E fazia-o sem ter tocado num cadáver. Enquanto, na física, Galileu renunciara a compreender o "horror ao vazio" que, segundo os antigos, obrigava os objectos em queda a ocupar espaço após espaço até atingir o solo, e dispusera-se a medir simplesmente a velocidade com que caíam, a trajectória que seguiam e a aceleração que sofriam, na medicina persistia-se em filosofar (no sentido popular do termo).
Mas a humildade de Galileu era cultivada por um grupo dentro da medicina: os "barbeiros" de Jacques le Goff. Vinda da Antiguidade, a teoria dos humores atribuía a doença a uma perturbação do equilíbrio daqueles (sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra). A urina era um compósito dos humores e, nessa medida, "contava" a história daquilo que acontecia no interior invisível do doente. Com quase nenhuns meios a que recorrer, os "práticos" faziam o que podiam: a urina era agitada, aquecida, cheirada e provada.
Não havendo quase mais nada com que tentar perceber a doença, o exagero era inevitável. Em alguns textos da Idade Média descrevem-se vinte tons diferentes da urina humana, cada um com um significado particular. Mas, ao contrário das adivinhações feitas sobre a observação das entranhas de animais, o voo das aves ou as posições dos planetas, as observações da urina eram rigorosas e, frequentemente, razoáveis. A associação entre diabetes e a excreção de grandes quantidades de urina (ou poliúria) foi feita na Antiguidade. Mil anos antes de Harvey, em 600 a.C., um médico indiano registou que a urina dos diabéticos era doce. Outros anotaram que tinha "um sabor semelhante ao mel". Ao contrário das divagações de Descartes sobre os movimentos do sangue, esta descrição continua válida nos nossos dias. Ainda que o "teste do sabor" já se não pratique.
Hoje a prática médica baseia-se na "evidência", isto é, confia mais nas observações e nos resultados do que em teorias subtis e vagas. É provável que os doentes prefiram assim.
O provador de urinas, que tocava nas imundícies dos doentes e as avaliava e media, humilde e observador, foi um precursor da medicina moderna. Desenterrá-lo do fundo dos tempos não é uma curiosidade. É uma declaração de princípio.
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